A madrugada de quinta-feira veio acompanhada de mais uma grande perda da arquitetura brasileira. Três dias após Paulo Mendes da Rocha, Jaime Lerner faleceu aos 83 anos, em Curitiba, por complicações de doença renal crônica. O arquiteto e político havia sido internado na última sexta-feira (21) na capital.
Quem foi?
Jaime Lerner nasceu em 17 de dezembro de 1937 e desempenhou um papel de grande importância tanto na política como na arquitetura, que sempre foram duas ciências que caminharam lado a lado em sua trajetória. Em 1965, o arquiteto integrou a equipe criadora do IPPUC (Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba), e cinco anos mais tarde começou sua carreira pública.
Eleito prefeito de Curitiba, o arquiteto teve duas obras na época que ficaram para a história: Rua XV de Novembro e a abertura das caneletas exclusivas para ônibus expressos (BRT). Além da prefeitura, ele também assumiu como governador do Paraná duas vezes, em 1994 e 1998.
Como arquiteto, Jaime Lerner foi um dos consultores da ONU para assuntos de urbanismo. Um de seus grandes destaques foi o lançamento da técnica de Acupuntura Urbana, que nada mais é do que a união do desenho urbano com a tradicional teoria médica chinesa, o que contribuiu diretamente para projetos mais sustentáveis.
Seus conceitos revolucionários, sobretudo no transporte público em Curitiba, o apelidado “metrô sobre rodas”, foi imitado em Los Angeles, Istambul, Bogotá, entre outros países, e é louvado até hoje.
Legado
Lerner foi, sobretudo, um visionário, um apaixonado pela inovação. Sempre antenado com o que havia de mais novo no cenário internacional, o que não era nada simples na época, ele encarnou, com louvor, o personagem do “arquiteto genial”, característico de sua geração. Quando lhe diziam “isso nunca foi feito”, costumava responder “melhor ainda!”. A conjuntura política durante seus mandatos ofereceram a possibilidade de concretizar sua visão única de cidade e arquitetura.
Da mesma forma que outros expoentes, como Paulo Mendes, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Affonso Eduardo Reidy, os projetos de Lerner possuem características tipicamente modernas: grandes obras públicas personalistas, quase messiânicas, já que o arquiteto se apresentava como figura que vinha com as soluções. No caso específico de Lerner, o urbanismo se destacou como linguagem que traduzia suas inquietações sociais e criativas.
“Jaime Lerner era um arquiteto que não tinha medo de experimentar”, diz a professora de História da Arquitetura Brasileira da UFPR, Juliana Suzuki, que pesquisou seu vasto acervo de obras (construídas e não construídas).
Lerner foi arquiteto, urbanista e engenheiro antes de ser político. Ele queria uma Curitiba que fosse das pessoas e não dos carros e máquinas. A professora explica que, nesse grupo de arquitetos modernos, havia um entendimento de que a infraestrutura e a eficiência eram o que faziam as cidades se desenvolverem.
Suas obras mais conhecidas refletem tal raciocínio: o icônico sistema de canaletas para melhorar a mobilidade, assim como o calçadão da Rua XV, uma iniciativa de tornar o Centro mais peatonal. “Ele pensava em muita coisa, idealizava muita coisa. Depois que se tornou prefeito, e posteriormente governador, ele conseguiu viabilizar algumas de suas ideias, e algumas delas reverberaram nacional e internacionalmente. Ele criou a Curitiba do século XX ”, afirma Juliana.
Mesmo depois de deixar a política, Lerner continuou projetando. Inclusive, conta Juliana, ele detestava falar sobre projetos antigos, consolidados ou velhos. “Estava sempre olhando para o futuro. Quando falávamos de obras anteriores ele parecia entediado, mas bastava perguntar sobre o que ele estava fazendo, ou iria fazer, que se animava e ficava empolgado”.
Carismático, energético e apaixonado, Jaime Lerner era uma personalidade emblemática, polêmica, e inesquecível. “O legado inegável e incrível de Jaime Lerner é que ele trouxe a preocupação com o planejamento estratégico urbano. Ele criava os órgãos, planejava as obras. Ele fez com que as pessoas e os governos olhassem para as cidades. Pensassem nas obras públicas, no transporte público, nos espaços públicos. Lerner foi um radar que, lá atrás, lançou as bases para as cidades do presente. E também do futuro”, finaliza.
Principais obras
Rua XV de Novembro (Curitiba – PR)
Inaugurada em 1972, no primeiro mandato de Jaime Lerner na prefeitura, a Rua XV de Novembro é um marco no Centro de Curitiba. Ela consiste em uma grande calçada repleta de comércio, com uma praça na extremidade. O conceito era revolucionário no Brasil daquele momento. “Ela devolveu o Centro às pessoas e foi contra a cultura automobilística da época”, afirma a professora.
Ópera de Arame e Universidade Livre do Meio Ambiente (Curitiba – PR)
Ambas as obras não foram projetadas por Jaime Lerner, mas sim pelo arquiteto Domingos Bongestabs. O fundamental papel de Jaime Lerner nelas, foi tomar a iniciativa, enquanto prefeito de Curitiba, de transformar áreas de antigas pedreiras em pontos turísticos e culturais.
Teatro Paiol (Curitiba – PR)
O edifício havia sido construído no século dezenove, como um depósito de munições e armamentos. Em 1971, também durante uma de suas gestões como prefeito, Jaime Lerner propõe uma transformação inovadora e pouco realizada na época: converte o local, preservando suas características históricas, em um teatro com capacidade de 225 pessoas. O Teatro Paiol foi o primeiro teatro de arena de Curitiba e, em sua inauguração, foi batizado com whisky por Vinícius de Moraes.
BRT (sistema de transporte público de Curitiba)
Com verba limitada, que impossibilitava a implantação do metrô, o Jaime Lerner deu vida ao seu projeto com a criação de um “trólebus” com pista exclusiva e mais ágil para que as pessoas não precisassem ficar esperando mais de um minuto pelo seu transporte. O que antes levava até 50 mil passageiros, hoje conta com uma extensão que suporta quase 3 milhões, capacidade semelhante ao modelo implementado em Londres.
Residência do arquiteto (Curitiba – PR)
Menos conhecida, mas não menos impressionante, está a residência de Jaime Lerner no bairro do Cabral, em Curitiba. Construída e projetada por ele na década de 1960, a casa já possuía elementos bastante contemporâneos, como um telhado verde. Juliana Suzuki conta que “em 1960 não era comum pensar em ‘sustentabilidade’ ou ‘ecologia’, Lerner incorporava conceitos novos e internacionais, mas aos olhos do público aquilo era apenas excentricidade”.
Parque Urbano da Orla do Guaíba (Porto Alegre – RS)
Honrando seu entusiasmo com o presente, o Parque Urbano da Orla do Guaíba é uma das obras recentes – e muito elogiadas – assinadas pela Jaime Lerner Arquitetos Associados. Localizada em Porto Alegre, trata-se de uma iniciativa de recuperação e valorização da Orla do Lago Guaíba com 56 hectares ao longo de 1,5 km de margem do lago.
Os arquitetos construíram estruturas para abrigar comércios, restaurantes, cafés e outros pontos culturais, estimulando a circulação e ocupação por parte dos moradores da cidade. Além disso, também foi implementado um projeto paisagístico de regeneração das espécies ribeirinhas do local.