Nunca se falou tanto sobre Carnaval de rua no Brasil como nos últimos anos. Além de Rio de Janeiro e Salvador — cidades que tradicionalmente recebem os foliões —, São Paulo despontou como um dos principais (há quem diga que é o principal!) destino carnavalesco do país. Isso graças ao sucesso e aumento dos carinhosamente chamados “bloquinhos” — que outrora faziam sucesso nas ruas paulistanas. “Antes, o Carnaval era a festa do povo. Imagino que isso se perdeu por conta da elitização cultural que ocorreu durante as décadas de 1960 e 70, mas que, ainda bem, voltou a refletir a alegria e pluralidade das pessoas nos últimos anos”, reflete Walter Pereira Jr, fundador da inCanto Urbano, imobiliária especializada no Paraíso e que vai patrocinar este ano o bloco Cascavel, tradicional no bairro.
Apesar de serem chamados no diminutivo, muitos blocos tornaram-se megablocos, arrastando multidões por ruas e avenidas, o que passou a demandar do poder público uma organização de infraestrutura pensada especialmente para dar apoio aos foliões e garantir o funcionamento de uma cidade que não costuma ser tão amistosa com seus cidadãos. Para se ter ideia da dimensão do evento, em 2024, São Paulo vai receber aproximadamente 579 blocos em diversas regiões da cidade, e atrair cerca de 15 milhões de pessoas, de acordo com dados divulgados pela prefeitura.
Nesses dias de festa, em vez de congestionamento de carros, há movimento de pessoas transitando pelas ruas. E, assim, cresce a sensação de que a cidade continua sendo um lugar para todos. De acordo com Caroline Martins, diretora do grupo de diversidade e inclusão da AsBEA-SP (Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura), o fortalecimento do Carnaval de rua em São Paulo nos últimos anos está ligado à valorização da cultura, à promoção da inclusão e à celebração da diversidade. “A tradicional festa, totalmente enraizada na identidade cultural brasileira, serve como um elo que conecta pessoas de todas as origens”, diz. As redes sociais também desempenham um papel importante na visibilidade do carnaval paulistano, atraindo tanto os foliões tradicionais quanto novos participantes. “Dessa forma, a celebração não só preserva a tradição, mas também se destaca como um palco inclusivo e diversificado, exaltando a cultura e celebrando a riqueza da diversidade na cidade“, explica Caroline.
Espaço público para todos
Na percepção de Octavio Pondetura, sócio-proprietário da imobiliária Refúgios Urbanos e especialista em Higienópolis e região, existe realmente um desejo de se estar nas ruas. “Quando a cidade oferece essa possibilidade, ela é imediatamente respondida positivamente. E o carnaval demonstra a capacidade que a cidade tem de absorver essa demanda por espaços públicos abertos”, afirma.
Caroline lembra que qualquer manifestação popular — desde que esteja de acordo com a lei — é legítima como validação dos espaços públicos. “O carnaval é uma festa popular e muito arraigada na nossa cultura, e ver essa festa acontecer num espaço democrático e aberto é muito bonito. Muito melhor do que festas em clubes fechados ou sambódromos”, enfatiza. Ao mesmo tempo, a diretora explica que São Paulo não é uma cidade generosa em termos de espaço público, que em muitos bairros se resumem às ruas e calçadas estreitas. “Assim, o ressurgimento do carnaval de rua pode impulsionar a percepção das pessoas sobre a importância da quantidade e qualidade dessas áreas”.
Para o arquiteto e urbanista Celso Rayol, sócio-diretor da Cité Arquitetura no Rio de Janeiro, é durante o Carnaval que as ruas e avenidas ganham cor e vida. “Surgem blocos espontâneos em lugares inusitados, fora do tradicional, e isso diz muito sobre essa descoberta e apropriação dos espaços públicos, revelando o olhar do jovem sobre a cidade. No Rio, por exemplo, o festejo se concentra no centro, que é a zona comercial da cidade e pouquíssimo movimentada aos fins de semana e feriados”, explica.
Por outro lado, é necessário reforçar a consciência coletiva nos cidadãos. “Algumas pessoas não entendem que o fato de o espaço ser público, não significa que ele possa ser usado como bem quiser e, principalmente, sem cuidado. Jogar lixo na rua, deixar uma bagunça depois da festa é algo que ainda reflete essa falta de consciência sobre os espaços públicos que precisam sim ser tomados e utilizados, mas sempre com zelo”, afirma Walter.
É inegável a força que o carnaval exerce sobre a ocupação das ruas pelas pessoas, mas é importante garantir que essa retomada não seja momentânea e influencie esse sentimento ao longo do ano. Para isso, políticas públicas são necessárias para garantir o bem-estar de todos, como segurança, regulamentação do comércio de rua e implantação de infraestruturas, a exemplo de banheiros químicos e postos de primeiros socorros. “E, claro, a criação e manutenção de espaços que acomodem não apenas as festas, mas também as demandas cotidianas dos cidadãos”, afirma Caroline.
Além disso, Octavio defende a descentralização dessa ocupação, que costuma ocorrer em bairros mais centralizados — em São Paulo, na região da Avenida Paulista e no centro histórico da cidade. “Existem outras ruas de lazer, eventualmente, em outros lugares, mas ainda são poucas. Então eu entendo que é muito importante abrir canais nos bairros onde essas demandas possam ser ouvidas pelas subperfeituras e associações para ter um caminho a fim de solicitar e incluir esses lugares públicos abertos em determinados momentos da semana”, diz.
O investimento em planos de recuperação urbanística, cultural, social e econômica dos espaços públicos é outro ponto levando por Celso como um legado que o carnaval deve deixar. Ele cita como exemplo o projeto Reviver Centro no Rio de Janeiro. “O carnaval atrai a população para essas áreas cinzas, pouco ocupadas, que ganham um novo sentido. As prefeituras podem, e devem, aproveitar o cenário para atrair novos moradores por meio desses programas de incentivo, usufruindo de construções já existentes e terrenos inutilizados”.
Transporte público é essencial
O transporte público desempenha um papel crucial na retomada das ruas durante o carnaval e também em outros eventos durante o ano, especialmente para os moradores de regiões periféricas da cidade. “Além de proporcionar uma locomoção acessível, eficiente e inclusiva para foliões de todos os bairros, o transporte público promove a integração cultural ao unir pessoas”, defende Caroline. Durante o carnaval, inclusive, a importância do transporte não se limita aos foliões, mas também aos outros usuários cotidianos. Por isso, é preciso que as prefeituras garantam a eficiência de ônibus, metrô e trens para uma mobilidade fluida e inclusiva, beneficiando toda a comunidade urbana.
Walter também lembra que quanto melhor o transporte, mais pessoas usam e mais espaços para convivência conseguimos com a diminuição da circulação de veículos. “Aqui no Paraíso mesmo, uma parceria entre Itaú e SESC acaba de fechar um pedaço da Rua Leôncio de Carvalho e em breve teremos um boulevard incrível por aqui”, revela.
E quem não gosta de carnaval?
Em uma cidade tão ampla e diversa como São Paulo, é um desafio organizar o carnaval de rua sem que haja impactos para quem decida ou não possa participar da folia. E planejamento é a palavra-chave. “Existe uma questão funcional, como a questão da circulação das pessoas, ambulâncias, polícia, etc. E existe uma questão mais subjetiva, que tem a ver com quem quer e quem não quer participar da festa. A maneira de enfrentar ambas é por meio de planejamento do evento pela prefeitura, que precisa entender onde e como as pessoas vão se aglomerar, de onde vêm, para onde vão, onde vão fazer barulho, como são as infraestruturas e serviços necessários para isso”, explica Caroline. Além disso, é fundamental estruturar uma boa comunicação com a sociedade para que durante o carnaval todos possam se sentir confortáveis, independente de como decidiram aproveitar o feriado.
Outra solução é distribuir os blocos pela cidade a fim de não inviabilizar a circulação de pessoas na região central. “Acho que já melhoramos muito colocando os megablocos em áreas mais amplas e os blocos menores pulverizados por diversas regiões da cidade”, avalia Walter. Ele também enfatiza que a organização do trânsito, pensando em rotas especiais para ambulâncias e outros veículos de emergência, é fundamental.